O borrão existencial
Sob a a sombra das árvores Myrtes nos pediu que pintássemos numa grande folha de papel.
Ela era adorável! Nos disse para sermos como crianças pequenas que se divertem, e não foi preciso que pedisse duas vezes! Minha menina de seis anos tomou conta de mim, e usei as mãos, os braços, cotovelos e pés como pincéis!
Usei o preto, e depois o branco, e mais branco, até que tudo ficou como uma mancha cinza indefinível. Então colei florzinhas, galhos, folhas e terra sobre o borrão magnífico.
Distribuímos os trabalhos sobre a grama, e Myrtes pediu que olhássemos todos e escolhêssemos aquele que nos chamasse mais a atenção.
Os olhos de muitos de dirigiram ao meu borrão, e não foram elogios não, disseram que era horrível, que incomodava! Mas a criança dentro de mim estava exultante, apenas por ter meu trabalho/estrago escolhido!
Myrtes disse que representava o caos, o que não era ruim, pois o caos antecedia uma nova ordem no universo...
Naquele momento que eu vivia, concordei com ela. Poucos anos depois ela partiu desta vida nas mãos de um câncer implacável.
Hoje me lembro novamente desta história, divirto-me com ela, mas mais que isto, percebo que alguns dias são como o borrão cinza de meu desenho de criança livre. Não se trata mais do caos, mas de um espaço/tempo longe de tudo que conhecemos.
Divirto-me em nada fazer, em meio a tudo a fazer. O nada me atrai como nada mais pode me atrair.
Sento-me no meio desta mancha cinza e informe, entre o tempo e o não tempo, entre o fazer e o não fazer, entre o ser e o não ser...
É um luxo! Desperdiçar o tempo em nada. Mas aqui há tanta paz, tanto brilho e luz! Um gosto acridoce de morte, um gosto de tinta borrada...
Talvez seja a claraluz, este instante mergulhado em uma mancha de tinta, perdido do tempo...
Talvez a possibilidade fecunda de tudo o que está por vir...
Assim caminho entre dois mundo, o bardo, o limbo, entre o criado e o incriado, um momento entre o nascer e o morrer, em perfeita serenidade!
Ana Liliam
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